
O livro será lançado pela Thomas Nelson Brasil – a mesma editora que lançou a autobiografia de Aline Barros – e conta a história da mulher que enfrentou a pobreza, a violência e o preconceito para dar uma nova vida e o amor de uma verdadeira mãe a dezenas de crianças.
A obra mostra, de maneira envolvente, as batalhas que a autora teve de enfrentar para conquistar a guarda e confiança de seus filhos, desde a adoção da primeira criança até a mais recente, passando ainda pelo nascimento de seus quatro filhos biológicos.
Conhecida como a "missionária do tráfico", Flordelis dos Santos de Souza conta sua trajetória a Marie Claire

Flordelis dos Santos de Souza tinha 14 anos quando seu pai e seu irmão morreram em um acidente de carro. A reação dela ao receber a notícia surpreendeu a todos na comunidade do Jacarezinho, onde nasceu e foi criada. Ela chamou amigos e passou a noite compondo a música que cantou na cerimônia de sepultamento. Uma multidão acompanhou o enterro. Ali, ela deu o primeiro sinal de possuir um dom para lidar com tragédias. Nos anos que se seguiram, Flordelis dividia seu tempo entre o canto religioso (ela é evangélica), o trabalho de balconista em uma padaria, o marido e os três filhos. Também era procurada por moradores da comunidade para resolver problemas deles com o tráfico de drogas. Agia como uma líder comunitária em Jacarezinho. Ganhou a alcunha de “missionária do tráfico”. Aos 29 anos, outro drama marcou sua vida. O marido a deixou, e Flordelis passou a cuidar sozinha dos filhos. Quatro anos depois, a missionária decidiu fazer do abandono sua causa pessoal. Adotou a primeira das dezenas de crianças a quem chama de filhos. Há 15 anos, Flordelis salva crianças do tráfico. São 50 filhos, entre biológicos e adotados. A grande família vive em uma casa de classe média alta, em Niterói, no Rio de Janeiro — ela conta com a ajuda do empresário Pedro Werneck para pagar o aluguel. As idades variam de três a 34 anos. Depois de ser tachada de santa, louca e criminosa, a história dela será contada no documentário Flordelis: basta uma palavra para mudar, em cartaz este mês. Globais como Fernanda Lima, Reinaldo Gianecchini, Letícia Sabatella, Deborah Secco, Cauã Reymond e Marcelo Antony toparam fazer o filme sem ganhar nada para ajudar Flor, como é chamada, a educar seus filhos. O dinheiro das bilheterias deverá ajudá-la a comprar sua casa própria. Outra esperança é a de que com sua história retratada na telas, o preconceito a seu respeito diminua — no filme, Flor interpreta ela mesma e sua voz aparece em off em algumas cenas. Recentemente, alguns moradores se manifestaram contra sua presença no condomínio onde vive com seus filhos, em Niterói. Argumentaram que a família poderia desvalorizar a área. Foi nesta mesma casa que Flordelis recebeu Marie Claire para a entrevista que você lê a seguir e que um de seus filhos tocou Bach e Villa Lobos em um piano de cauda para os jornalistas.
“A mãe ia dar a filha recém-nascida para um bêbado criar. Na mesma hora, pedi para ficar com o bebê” |
MarieClaire Fazer esse trabalho, criar essa grande família era um plano, um objetivo de vida?
Flordelis dos Santos de Souza Não mesmo. Eu tinha 33 anos e três filhos [Simone, 15, Flávio, 14, e Adriano, 6 anos] quando peguei a primeira menina para criar. Raiane tinha 15 dias e estava abandonada em um terreno baldio, no meio do lixo, perto da Central do Brasil. Era janeiro de 1994. Fui à Central a pedido de uma mãe que procurava pela filha que havia fugido de casa por causa de drogas. No Rio, criança de comunidade quando foge vai para a Central do Brasil ou para Copacabana. Nesses lugares é mais fácil arrumar dinheiro com prostituição e venda de drogas. Logo que cheguei à Central, avistei uma calçada com um monte de bebês. Algumas mães costumavam deixar suas crianças enquanto se prostituíam. Conversei com uma delas, que estava muito drogada. Ela contou que tinha deixado a filha num terreno baldio vizinho. Enquanto falava da filha, ria e chorava... ia dá-la para um bêbado criar. Na mesma hora, pedi que deixasse o bebê para eu cuidar. Fomos juntas pegar a Raiane e a levamos para casa. Disse que poderia voltar quando quisesse para ver o bebê. Uns dias depois, ela apareceu em casa assustada, pedindo para eu proteger outras crianças que estavam dormindo no calçadão da Central. Disse que um policial à paisana havia passado por lá de carro à noite e que tinha atirado para todos os lados. Pelo menos 37 sobreviveram.
MC E então você decidiu ficar com todas?
FSS Sim. A mãe da Raiane pegou todas e levou para minha casa.
MC Mas a senhora tinha condições de abrigar todo mundo?
FSS Nenhuma. Ficaram 47 pessoas morando numa casa de dois quartos, cozinha e banheiro. Eu, os meus três filhos biológicos do primeiro casamento, os cinco meninos que já tinha tirado do tráfico, a Raiane e as 37 crianças do tiroteio. Além do meu segundo marido, o Anderson [do Carmo], que sempre me apoiou.
MC Como você conseguiu sustentá-los?
FSS Parte vinha da aposentadoria da minha mãe, do salário do meu marido, que era funcionário do Banco do Brasil, e de um ou outro apoio do pessoal da Igreja. Depois, precisei de mais e fui procurar ajuda do Betinho[o sociólogo Hebert Souza, morto em 1997 em decorrência da AIDS] . Ele me achou doida, mas ajudou. Durante três meses, mandou comida lá pra casa e depois conseguiu que um telejornal da TV Globo fizesse uma reportagem sobre o meu trabalho. Por causa dessa matéria, o empresário Pedro Werneck ficou sabendo da minha história e passou a depositar semanalmente R$ 50 em nossa conta bancária, um bom dinheiro em 1994. Assim, nossa vida melhorou. Mas, por outro lado, a matéria trouxe um problema. Foi por causa dela que o juiz Liborni Siqueira soube da minha existência e me chamou para depor. Queria saber quem eram aquelas crianças, de onde elas tinham surgido e o que eu fazia com elas dentro de casa. Eu estava com elas desde o início do ano, e em novembro o juiz quis tirá-las de mim, distribuindo todas pelos Juizados de Menores do Rio. Eu me recusei a aceitar a ordem. O juiz bateu na mesa e perguntou se eu sabia com quem estava falando. Respondi: “O senhor é o juiz, e eu sou a Flordelis”.
“Os traficantes me deixavam entrar nas bocas porque achavam que eu era louca” |
FSS Recebi dois mandados de prisão, um por desacato a autoridade e outro de busca e apreensão das 37 crianças. Eu tinha 24 horas para entregá-las. Fiquei desesperada e decidi fugir. Fomos todos para um apartamento emprestado no Irajá, no subúrbio do Rio. Conseguimos ficar ali quatro meses, até que o Juizado de Menores nos localizou. É difícil esconder tanta gente! Fugimos de novo. Passamos a primeira noite embaixo de uma marquise do bairro Parada de Lucas, perto da comunidade do Vigário Geral, um lugar bem violento. No dia seguinte, a minha foto estava em todos os jornais da cidade. Eu tinha me tornado sequestradora de crianças. Mesmo assim, o presidente da associação dos moradores desse bairro nos ofereceu ajuda para nos esconder e, claro, aceitamos. Fomos para uma casa ali perto, onde ficamos mais quatro meses, até a hora em que a situação ficou completamente insustentável. Com a notícia de que eu era sequestradora, o Pedro Werneck interrompeu a doação. Nós não tínhamos mais nada, estávamos sem saída. Com a ajuda de uma funcionária da ONU, Marlene Loro, que me conhecia desde Jacarezinho, decidimos dar uma entrevista coletiva para eu me explicar. Assim consegui que a Justiça reavaliasse a situação. Dias depois, uma junta médica chegou à casa onde a gente estava para ver como as crianças viviam. Havia médicos, psicólogos e um advogado. A casa era pequena para tanta gente, mas dava para ver que cada um dos meus filhos tinha as coisas organizadas e que ninguém andava descalço. Os profissionais perceberam que ali existia uma família de verdade.
MC Então você ganhou a guarda das crianças?
FSS Não imediatamente. Primeiro, o caso passou a ser estudado por outro juiz, o Siro Darlan de Oliveira, mais amigável que o primeiro. Ele me perguntou se eu estava disposta a fazer um acordo: eu tinha um mês para alugar uma casa com, no mínimo, seis quartos e três banheiros, e fora da comunidade. Aceitei na hora.

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"Todo aquele que ler estas explanações, quando tiver certeza do que afirmo, caminhe lado a lado comigo; quando duvidar como eu, investigue comigo; quando reconhecer que foi seu o erro, venha ter comigo; se o erro for meu, chame minha atenção. Assim haveremos de palmilhar juntos o caminho da caridade em direção àquele de quem está dito: Buscai sempre a Sua face."
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